terça-feira, 19 de julho de 2011

REMINISCÊNCIAS DE CANAVIEIRAS

Pelos caminhos da fé
Carlos Andrade


Ao ler o livro Pelos caminhos da fé, algo fantástico me fez retornar ao passado, como em outras circunstâncias, motivado por diferentes fontes de estímulos. A primeira dessas fontes são os arquivos da minha própria vida guardados em meu inconsciente. Talvez por me encontrar distante de minha terra natal, relembro detalhes de minha infância em Canavieiras e os ambientes em que vivenciei situações, de maneira tão forte e viva, que seria capaz, se um artista eu fosse, de reconstituir os detalhes em tinta e papel: pormenores da casa onde morei, do quintal, do portão quebrado, das ruas onde brinquei com os meninos de lá, jogando gude ou pião. Lembro-me das nuances da escuridão da noite, quando sentados em frente da casa, depois do café, ouvíamos histórias (quase sempre inventadas) que meu avô contava, tendo como trilha sonora as fantasmagóricas passagens dos rasga-mortalhas e os gritos distantes e horripilantes da cavala.
Como segunda fonte, tenho as histórias particulares de meu avô, na época de adolescência. São fatos que, narrados por ele de forma tão marcante, me levam ao seu passado, como se eu tivesse vivido em sua época, acompanhando-o passo a passo em suas aventuras, pulando quintais onde goiabeiras e outras fruteiras carregadas convidavam os meninos a se aventurarem, sob o perigo de mordidas de cachorros, de vassouradas ou de uma bela surra em casa. Quantas vezes estive com ele no interior da construção da Igreja Matriz, para guardar enterradas as frutas roubadas dos quintais vizinhos...
João Guriguti (João Batista Gonçalves), meu avô, nasceu em 1909, e viveu a adolescência na época em que a Igreja Matriz estava com a construção paralisada. Mas foi lendo Pelos caminhos da fé, que despenquei em mais uma dessas fontes. Uma porta na máquina do tempo. Uma passagem dimensional que me levou ao passado mais distante ainda, num estágio mais pretérito, num envolvimento tão forte que por pouco sou capaz de jurar que eu também estava lá. Quando criança, a igreja católica me dava medo. Lembro-me que uma vez eu estava parado em frente ao muro da casa do Sr. Josias Teixeira, para comprar de seu irmão Node, algumas cajás deliciosas, quando me deparei horrorizado, petrificado, sem mais tempo (nem condições) para correr, com uma das campanhas da igreja católica. Havia uma multidão de homens gigantescos (era como os via em meu medo), com grandes bandeiras vermelhas e vestimentas iguais, repetindo em coro e alto som algumas frases que me fizeram imaginar que aquele seria o meu fim, a noite de São Bartolomeu. Mas, foi degustando Pelos caminhos da fé que percebi as marcas dos pezinhos de São Boaventura voltando para o Puxim e sua cara de indignado quando lhe pegavam e traziam de volta para Canavieiras. A narrativa da contratação do cangaceiro Antonio Silvino, pelo frei Celestino di Pedavoli, para matar o missionário Salomão Ginsburg, me levou para o outro lado da rua, a espionar Antonio Silvino na porta da igreja protestante, sendo atendido pelo pastor e ouvindo sua pregação. Quase posso jurar que assisti toda sua conversa com o pastor já em sua casa e como lhe pediu desculpas e jurou matar o frei, mesmo contra a vontade do missionário. Parece-me que tinha mais alguém além de mim ouvindo a conversa dos dois, que foi avisar o frei, que sumiu da cidade.
Ler Pelos caminhos da fé é como fazer análise psicanalítica. É trazer à tona, registros inconscientes, esquecidos no passado, mas que muitas vezes nos afligem. A pulsão do inconsciente tende a descortinar o passado, mas não pode acontecer sem um criterioso cuidado. Na dosagem certa, o analista vai fazendo com que esses conteúdos cheguem à consciência, sem maiores conflitos. E à medida que isso acontece, o enriquecimento ocorre, seja ele cultural ou apenas pelo prazer de saborear delícias que não são do seu tempo, mas que estão à sua disposição, como um presente. Alguns relatos, como o do Ten. José Américo eram por mim conhecidos através das histórias de meu avô. Ele me contava como o tenente obrigou um carroceiro a tomar o lugar do burro e puxar a carroça debaixo de chicotadas, porque obrigava o animal a carregar cargas absurdas, que mal podia suportar.
No geral, temos o estilo do escritor que pensa e faz com que seja conhecida a importância dessa pequena cidade, na integração de seu povo, como parte essencial do desenvolvimento do sul e extremo sul do Estado, num contexto que alcança as mais variadas atividades, sejam elas culturais, religiosas, econômicas e políticas. Meu amigo Durval é um apaixonado pela história, principalmente pela sua própria história. A História de Canavieiras, que alcança tão vasta área geográfica, é sua história. Pelo visto, Pelos caminhos da fé, marca o início de uma longa série, porque Canavieiras tem muita história, e em Durval, com certeza, temos o escritor dedicado, com todo o ânimo e interesse para contá-las.
- - - - - - - - - - - - - - -
Carlos Andrade é advogado e psicanalista em Petrolina/PE

2 comentários:

Deixe aqui seu comentário